A diversidade religiosa no ambiente escolar – Conversa com Gabriela Abuhab Valente
Gabriela Abuhab Valente atua como professora temporária do Département de Sciences de l’éducation et de la formation da Université Jean Jaurès- Toulouse II e como professora do Institut des Sciences et Pratiques d’Education et de Formation (ISPEF) na Université Lumière Lyon 2. Gabriela também é pós-doutoranda da Université Lumière Lyon-2 e doutora em Sociologia da Educação em cotutela entre a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).

Com base em sua experiência na pesquisa “Religião, discriminação e racismo no espaço escolar”, quais estratégias e práticas você recomenda para garantir que a laicidade seja respeitada e efetiva em escolas com alta diversidade cultural, racial e religiosa?
Essa questão solicita uma resposta em dois tempos. O primeiro tempo para pensarmos estratégias e o segundo, para pensarmos as práticas profissionais docentes.
As estratégias podem ser traduzidas em políticas públicas. Dentre as políticas educativas, poderíamos citar aquelas voltadas para a formação de professores como sendo a principal.
A laicidade é um princípio que oferta a possibilidade de refletir de forma crítica sobre as relações entre Estado e religião (religiões), ou seja, entre esfera pública e esfera privada através de quatro fatores, a saber: separação política entre Estado e religiões, a neutralidade de tratamento do Estado na direção das diferentes religiões, a liberdade individual de crença e convicção e igualdade de tratamento do Estado aos diferentes cidadãos (BAUBÉROT, MILOT, 2011).
Qual é o papel da escola nestas relações? O que é importante não é uma resposta correta e única, mas é o caminho reflexivo para pensar sobre essa questão. Isso demanda tempo e conhecimento histórico, filosófico, jurídico e sociológico. Esta reflexão poderá, em seguida, orientar as práticas docentes.
Ademais, a formação de docentes é também um espaço de distanciamento crítico em relação às nossas próprias “verdades”, permitindo-nos compreender como nossa percepção do mundo orienta nossas ações e, neste caso específico, como nossas crenças (religiosas ou não) influenciam nossos comportamentos. Posso trazer alguns salmos para a sala de aula? Posso falar de Deus para os alunos? Podemos trabalhar o natal nas escolas? Essas perguntas nos levam a fazer uma distinção fundamental entre o saber e a crença e questionar o que faz parte do ensino público, laico e gratuito.
Isso nos leva a uma segunda estratégia política para pensar a laicidade na escola: a construção de currículos e programas educativos, que valorizem a diversidade sociocultural da população brasileira, e que procure também explicitar alguns conceitos como liberdade, respeito, cidadania e laicidade para poder trabalhar, acolher e mobilizar essa diversidade no cotidiano escolar. Neste sentido, poderíamos falar de uma pedagogia da laicidade, como propõe Bidar (2016) que parte do pressuposto que a laicidade se aprende e se ensina.
Já no que concerne às práticas profissionais docentes entendo que são práticas quotidianas de gestão de situações pouco previstas pelos docentes e de mediação de situações entre os alunos, ou seja, situações em que a argumentação é necessária (Boltanski e Thévenot, 1991). As práticas docentes podem ser influenciadas pelos conhecimentos sobre laicidade, mas também pelas experiências anteriores do professor (o contato com outros docentes, a experiência enquanto aluno, a sua própria crença religiosa, as situações vividas, etc.). A forma como um professor vai gerir uma situação é um exemplo para os alunos. A laicidade pode ser um argumento forte para defender o respeito, à diversidade religiosa e o espírito crítico, e, desta forma, uma ferramenta forte e concreta para manter uma postura justa, coerente e respeitosa da deontologia profissional deste trabalho que implica a relação com o outro (pais, alunos, outros professores, etc.).
Como você vê o papel dos professores na promoção de um ambiente escolar que respeite e valorize a diversidade religiosa, mantendo a laicidade?
Esta pergunta permite abordar diferentes maneiras de pensar a laicidade no espaço escolar.
A primeira, é pensar que se trata de uma responsabilidade coletiva. Docentes engajados individualmente na defesa da laicidade escolar acabam, por vezes, encontrando como obstáculo a resistência dos pais, colegas e mesmo dirigentes que possuem outra visão da educação. Para que haja um trabalho coletivo, o suporte político é de extrema importância, assim como é preciso que os docentes, diretores, coordenadores e todos os adultos da escola tenham a possibilidade de identificar o que significa laicidade e de agir de acordo, para tanto, a formação é essencial.
Mas o conhecimento não é o suficiente. É preciso também ter consciência desta função (qual é o papel do professor na sociedade?) e estar convencido de que a laicidade é essencial para a escola e para a sociedade. Isto não é fácil, principalmente na sociedade brasileira onde o proselitismo é muito forte.
Se pensarmos como Paulo Freire (2003), a educação é um ato político, um ato de amor, que necessita engajamento, persistência, tempo, argumentação, compreensão, abertura e troca. O papel do professor é esse, é possibilitar a educação e a emancipação dos jovens (todos os jovens, levando em conta sua diversidade), sendo a laicidade, ao mesmo tempo, um meio e um fim.
Como os professores podem lidar com possíveis conflitos entre o respeito às crenças pessoais dos estudantes e a necessidade de manter uma abordagem laica no ensino?
Esta questão me faz pensar os diferentes princípios de referência (Boltanski e Thevenot, 1991) que podem orientar as ações humanas e, neste caso, as práticas docentes.
Para os dois sociólogos, as situações de conflito, ou de “prova”, necessitam uma argumentação e, segundo eles, é a partir da maneira como os indivíduos justificam suas ações que podemos identificar os valores que orientam as práticas.
Durante a minha pesquisa de doutorado, encontrei dois principais princípios de referência que estão frequentemente em tensão: o primeiro se refere à necessidade de defender a igualdade entre os alunos, o segundo está relacionado com a necessidade de reconhecer e valorizar as diferenças individuais dos alunos.
Os professores lidam com os possíveis conflitos de acordo com a interpretação que eles fazem da situação e dos conhecimentos que eles possuem sobre a laicidade. As situações são inúmeras e diversas (assim como os alunos e os docentes), o que implica a ausência de uma forma única de lidar com as situações imprevistas ou com conflitos. O que eu posso afirmar é que, nas minhas pesquisas, eu constatei que os docentes que puderam argumentar seus posicionamentos a partir de conhecimentos sobre laicidade, inclusive distinguindo crença e saber, tinham uma argumentação mais coesa e consistente e, por consequência, uma maior escuta e um maior respeito da parte dos alunos e dos colegas.
Com base em suas pesquisas sobre diversidade sociocultural, qual é o impacto das escolas públicas laicas na promoção de uma cidadania plural e respeitosa em um país com grande diversidade religiosa como o Brasil?
O Brasil é um país enorme e muito diverso. Isso é resultado de uma história marcada por uma colonização violenta, por diferentes ondas de imigração interna e externa e por influência dos processos de mundialização e globalização.
A diversidade caracteriza a população brasileira e a laicidade seria um meio para garantir essa diversidade. A laicidade é a garantia de que todos os cidadãos possam encontrar o seu lugar na sociedade, sentindo-se representados, valorizados e livres para se expressar, tendo como limites o respeito e a liberdade do próximo.
A escola pública e laica é um espaço privilegiado para o aprendizado do respeito desta diversidade e também da laicidade. Assim como aprendemos matemática e português, podemos aprender laicidade e respeito. A Escola, com E maiúsculo, é um espaço de conhecimento de si e do outro, um espaço de construção de respeito, de cidadania e de diversidade em nossa sociedade hoje e amanhã.
Vale a pena conferir
Materiais: Diversidade Religiosa e Direitos Humanos
Sob indicação do gestor Adecir Pozzer, de Santa Catarina, uma coletânea de obras para apoiar o trabalho do/a professor/a em temas de diversidade religiosa e direitos humanos.
Nexo Jornal: Estado laico: de onde vem a ideia. E por que ela é indispensável | Podcast #61
Um panorama histórico profundo sobre a origem e a definição de Estado Laico.
ECOA – Uol: Educação laica: Como as religiões devem ser tratadas nas escolas públicas?
Uma discussão aprofundada sobre o Estado Laico e os diferentes debates da inclusão ou a não inclusão das religiões nas escolas, mas também problematizando a falta de abertura quanto a inclusão da cultura africana nas escolas brasileiras.
Canal Futura: Diversidade religiosa na escola
Segundo o relatório sobre intolerância religiosa da UNESCO (2023) nota-se que as religiões de matriz africana são as mais atacadas. Pensando isso, na entrevista com Ivanir dos Santos para o Canal Futura, discute-se como a escola pode contribuir para a liberdade religiosa.