Tramita no Congresso um projeto de lei (PL 4606 de 2019) que “veda qualquer alteração, adaptação, edição, supressão ou adição nos textos da Bíblia Sagrada, para manter a inviolabilidade de seus capítulos e versículos, e garante a pregação do seu conteúdo em todo o território nacional”.
À primeira vista, parece algo bastante sensato e inofensivo. Ele visaria preservar a integridade do texto bíblico. E quem se colocaria contra isso? Uma enquete em curso na página do Senado Federal na internet tem até agora, hoje de manhã, 10 de dezembro, o resultado de 12.915 manifestações favoráveis e apenas 1.493 contrárias. Fica naturalmente em aberto quantos desses votos favoráveis querem simplesmente manifestar serem favoráveis à Bíblia, sem, contudo, se dar conta das implicações de um tal projeto de lei. Pois, examinando mais de perto o projeto de lei, ele não tem nada de sensato e inofensivo. Ao contrário, é algo perigoso e coloca até mesmo em sério risco a própria liberdade religiosa, ou mesmo o regime democrático. Se não, vejamos.
O projeto prevê flagrantemente uma interferência do Estado no âmbito religioso. Se aprovada essa lei, será naturalmente o Estado que precisará definir qual ou quais seriam as versões da Bíblia que poderiam circular livremente, é ele quem terá que fiscalizar se houve alguma alteração, adição ou supressão, é ele quem também terá que punir o que fosse julgado infração da lei.
O projeto foi apresentado na Câmara dos Deputados em 2019 pelo Pastor Sargento Isidório, deputado pelo AVANTE da Bahia. Ele teve como relator o deputado Eli Borges (PL-TO) que concluiu “pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa; e, no mérito, pela aprovação”. (https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2216376)
A matéria teve, a princípio, tramitação lenta, mas foi acelerada em 2022. Em novembro daquele ano foi submetida ao plenário da Câmara, tendo sido aprovado o projeto por estonteante unanimidade e remetida para apreciação no Senado Federal. Aparentemente nenhum, nenhum, dos deputados se deu conta das perigosas implicações da matéria.
No Senado o projeto também teve trâmite lento a princípio, mas neste 2025 a tramitação teve curso. Na Comissão de Direitos Humanos (CDH) o projeto recebeu parecer favorável do senador Magno Malta (PL-ES) que “argumentou que a medida está de acordo com a Constituição, que assegura a liberdade de culto e a proteção das manifestações culturais e religiosas. Para ele, a Bíblia representa não apenas um texto sagrado, mas também um patrimônio espiritual, cultural e histórico da civilização ocidental e da identidade do povo brasileiro.” Com o risco de “alterações motivadas por ideologia, agendas culturais ou militantes”, seria importante assegurar “a fé do povo que tem direito de acessar sua base textual com segurança e fidelidade”. (https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/04/23/avanca-projeto-que-proibe-alteracoes-nos-textos-da-biblia)
A CDH aprovou a matéria em abril de 2025 e a remeteu à Comissão de Educação e Cultura. Entrementes, houve uma mobilização de igrejas, entre as quais também a CNBB, e cursos de pós-graduação em Teologia e Ciências da Religião. A Comissão de Educação e Cultura programou então uma audiência pública, à qual também fui convidado, assim como especialistas ligados, entre outros, à Igreja Católica, à Igreja Batista e à Igreja Universal do Reino de Deus, além da Sociedade Bíblica Brasileira, para o dia 30 de outubro passado. Os pareceres foram unânimes no sentido de que o projeto deveria ser rejeitado, de um lado, por ser inexequível, por não existirem mais os textos originais da Bíblia, apenas cópias e cópias de cópias, de vários séculos posteriores, com múltiplas diferenças entre elas, mais ainda com multiplicidade de traduções. De outro lado, por estabelecerem a interferência do Estado em matéria religiosa, estabelecendo, portanto, uma flagrante inconstitucionalidade. O projeto estaria firmando o contrário do que alega pretender, ou seja, não a garantia de acesso a um texto religioso inviolável, mas sim o controle do Estado sobre a convicção de igrejas e grupos religiosos no tocante à Bíblia, como também o potencial cerceamento da pesquisa bíblica científica.
Eis que agora, mais precisamente ontem, 09 de dezembro, a Comissão resolveu aprovar solicitação de nova audiência pública. O pedido proveio da senadora dra. Eudócia (PL-AL), ela que, mesmo sendo relatora da matéria, sequer se dignou a comparecer à audiência do dia 30 de outubro passado, nem presencialmente nem remotamente, mas como relatora, claro, não poderá (assim penso) simplesmente ignorar as contribuições daquela audiência. A única interpretação possível é que ela ficou profundamente contrariada por aqueles pareceres, ainda mais consensuais, e deve ter se empenhado em encontrar outras pessoas dispostas a dar parecer favorável ao projeto de lei.
Pois bem, voltando ao dito mais ao início, o projeto de lei, se aprovado, estabelecerá flagrante interferência ao Estado em assunto de natureza religiosa, e caberá a ele então não apenas estabelecer qual ou quais as versões da Bíblia que não poderão ser alteradas, como depois fiscalizar seu cumprimento e punir quem porventura ousasse fazer modificação interpretativa ou atualizações de linguagem por exemplo.
A aprovação unânime do projeto na Câmara dos Deputados pode ter se dado por ingenuidade daqueles deputados e deputadas que seriam em tese contrários, mas julgaram a matéria destituída de importância e, por isso, preferiram ignorá-la. Uma irresponsabilidade, ao fim e a cabo. Mas não se pode atribuir igual ingenuidade aos deputados e deputadas e agora senadores e senadoras que propugnam por ela. Tomo por sentado que todos sabem tratar-se de atribuir uma função ao Estado que não lhe cabe. Mas por que fariam isso, se querem proteger a Bíblia?
Ora, a única interpretação possível é que o projeto de lei faz parte de um projeto de longo alcance, qual seja, atribuir a uma determinada religião, no caso uma particular versão do cristianismo, aquela dos proponentes, o poder de se sobrepor à sociedade como um todo, com o poder do Estado a seu serviço. A religião, de novo, regendo o próprio Estado. Ou seja, trata-se de um projeto teocrático.
Se exitoso, seria uma verdadeira volta à Idade Média, quando o poder eclesiástico estava acima do poder secular. Ou, então, uma semelhança a atuais regimes islâmicos teocráticos. Isso não pode prosperar, sob pena de vir a ser solapado o próprio regime democrático.
DIGA NÃO AO PL 4606 de 2019
O projeto (PL 4606 de 2019) fere claramente a liberdade religiosa, os princípios da laicidade do Estado e do pluralismo religioso, além de não evidenciar seu objeto com clareza – que versão da Bíblia estaria sendo protegida.
A ANPTECRE, a SOTER, o FONAPER, o FACRETER, bem como o FCHSSALLA e entidades a ele associadas já se manifestaram em outras oportunidades contra o referido PL, compondo, inclusive, recente Audiência Pública do Senado Federal, na qual todos os especialistas para ela convidados demonstraram, à exaustão, a radical inadequação e absoluta insustentabilidade do projeto.
Apesar de nossos esforços, e insistindo em procurar legitimidade para o projeto, a Comissão de Educação e Cultura do Senado resolveu aprovar solicitação de nova audiência pública.
Uma enquete em curso na página do Senado Federal na internet tem até o dia 10 de dezembro, o resultado de 12.915 manifestações favoráveis e apenas 1.493 contrárias.
A ANPTECRE, a SOTER, o FONAPER, o FACRETER conclamam as Comunidades Acadêmica, Religiosas e toda a Sociedade Civil, enfim, todas as pessoas comprometidas com a Democracia Brasileira, a dizerem NÃO ao PL 4606 de 2019, por meio da consulta pública disponível no site do Senado Federal: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=155307

