Este é o propósito de um paradidático intitulado O encontro do menino Jesus com a tradição dos Orixás, de autoria do professor e pesquisador da UFOP Erisvaldo Pereira dos Santos, que é também babalorixá do terreiro Ilê Axé Ogunfunmilayo (Casa de Axé Ogum Traz Alegria), em Contagem, MG, e um grande mestre e amigo. Este conto foi concebido para ser trabalhado em sala de aula com estudantes do Ensino Fundamental da rede pública. Ele nasceu no município de Contagem, MG, mas estará disponível para ser trabalhado onde se fizer necessário. A publicação está “no forno” para ser lançada.

Ao compartilhar a gênese desse trabalho o autor se expressa assim: “No Natal de 2020, ainda no contexto da pandemia do Covid 19, resolvi aventurar-me em um texto ficcional – e nem por isso menos verdadeiro – que aproximasse Jesus de Nazaré da Tradição dos Orixás. Desejava exaltar a força de Exu, mas não conseguia tomar distância da minha experiência cristã. Isto exigia uma ressignificação de categorias teológicas. Como entendo que o diálogo é fundamental na luta contra a intolerância e o racismo religioso, esta publicação – tornada possível através de Edital da Secretaria de Cultura de Contagem, MG – cumpriu esse propósito.”

Na Apresentação da obra o professor Erisvaldo explicita ainda mais a inspiração do livro: “A narrativa construída não é uma mera ficção. Trata-se de uma construção baseada em fato real. A intenção aqui foi de transformar um fato social que produziu sofrimento em uma prática educativa em prol da mudança de atitude e comportamento… O meu desejo, como educador e babalorixá, é que este livro possa contribuir para atitudes pedagógicas de respeito e empatia diante das crenças e práticas religiosas de todas as pessoas. Sou defensor do Ensino Religioso Escolar, pois entendo que instrução pode promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre nações e grupos raciais e religiosos em favor de uma cultura de paz e harmonia, conforme assevera o Artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A minha crença está fundamentada na esperança de que um dia o Sagrado de todos os povos e segmentos humanos não será mais utilizado como instrumento de violência, ódio e desarmonia social.”

Como pedagogo e pesquisador da área de Ciências da Religião tive o privilégio de fazer a revisão do seu trabalho, o que foi uma oportunidade para rica discussão teológica. Demo-nos conta, por exemplo, que há uma diferença substantiva entre grafar “menino Jesus” com “m” e Menino Jesus com “M”. A linguagem pode revelar e pode esconder. Neste segundo caso traduz um status, uma hierarquia, uma sacralidade atribuída a uma criança; já no primeiro, informa que o nome do menino é Jesus. Só isso. E é disto que precisamos para dar início a um diálogo inter-religioso de igual para igual, sem sobreposições. Este é o caso também de adotar a expressão “a família de Jesus” ou “os pais de Jesus” ao invés da expressão “sagrada família” da religiosidade popular.

Além do texto (conto) a obra inclui um glossário de termos e expressões elaborado também pelo autor; e três Roteiros de Estudo para aprofundamento em sala de aula elaborados por mim e pela professora Magda Antunes Martins. Reproduzo aqui o que escrevi para o Posfácio do livro:

“Esta obra nasceu da dor. Há dores que são causadas por agressores conhecidos, daí a discriminação, o bullying, a perseguição. Outras, fruto do silêncio e da indiferença. Nosso sistema de ensino está profundamente “contaminado” pela matriz judaico-cristã que dá valor e julga todas as realidades em nossa sociedade. Também ele foi concebido a partir dessa cosmovisão. A maioria de nós não se dá conta, por exemplo, da diferença de status que há entre as expressões “menino Jesus” e “Menino Jesus”. Por conta disso, é comum que os estudantes que tem uma vivência religiosa distinta da da maioria cristã ou que não tem qualquer filiação religiosa não se reconheçam nos temas propostos para discussão, trabalhos escolares e processos avaliativos. Para uns é motivo de sofrimento; para outros, de não reconhecimento da própria identidade.

Esta obra nasceu porque há dor. Apesar do princípio da laicidade do Estado, legislações e parâmetros curriculares disponíveis não são suficientes para garantir que a escola seja um espaço de legitimação da diversidade e de inclusão quando entramos no campo religioso, seja ele institucional ou não. Embora a grade curricular contemple uma disciplina que reflete sobre o fenômeno religioso e suas implicações no projeto de vida do estudante, como crenças essenciais, vocação e direitos humanos, a cultura escolar contem conteúdos, rotinas e modelos de gestão que por vezes contradizem esses princípios. O Ensino Religioso Escolar de caráter inter-religioso (quando adotado) e mesmo a transversalidade deste tema não são garantidores dessa almejada equidade na escola. Até a formação docente fala de um outro lugar, o da hegemonia do pensamento do homem branco cristão europeu.

Esta obra nasceu para minimizar a dor. Por um lado, dá visibilidade à mitologia Yorubá que tanta sabedoria tem a compartilhar; por outro, contribui em alguma medida para a “purificação” do Cristianismo porque o coloca em seu devido lugar, sem privilégios, de igual para igual com outras tradições religiosas, em particular as religiões de matrizes africanas que continuam sendo alvo de perseguição religiosa de grupos fundamentalistas.

Dito de outro modo, o Sagrado não cabe no conceito. Aprendi com Rubem Alves que “Teologia não é rede que se tece para apanhar Deus em suas malhas, porque Deus não é peixe, mas Vento que não se pode segurar… Teologia é rede que tecemos para nós mesmos, para nela deitar o nosso corpo. Ela não vale pela verdade que possa dizer sobre Deus (seria necessário que fôssemos deuses para verificar tal verdade); ela vale pelo bem que faz à nossa carne.”

Oxalá, educadores e gestores, criemos um ambiente convidativo para os estudantes “entrarem na cena” e, de modo contemplativo, deixarem se afetar pelo encontro do menino Jesus com Exu. Pode ser até que o grupo dos “amiguinhos de Jesus” aumente e o encontro com Exu ganhe mais expectadores. De todo modo, o mais importante é que tenhamos favorecido a abertura de espaços de diálogo e colaboração para “além-fronteiras” e a noção de que devemos sempre desconfiar de nossas certezas.” E assim seguimos nesta parceria que já dura quase 40 anos. Cada um em sua trincheira em prol de uma educação cada vez mais cidadã, e de uma sociedade mais justa e solidária.

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