Em julho de 2019, estive presente à atividade “Lacan na Academia: Conversando com a Literatura”, promovida pela Academia Mineira de Letras e pela Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG). Na oportunidade, Sérgio Laia apresentou sua análise da obra “Indignação”, de Philip Roth, de 2018. Não pertenço ao círculo psicanalítico. Sou um curioso da área das Ciências da Religião que se interessa por Literatura. Chamou-me a atenção a síntese feliz feita pelo palestrante de que “carne e sangue se misturam” porque “a vida não é kosher”. Este é um termo da tradição judaica para designar alimentos considerados adequados ou permitidos pelas leis alimentares dessa mesma tradição religiosa.

No romance ficcional o protagonista, procurando se distanciar de tudo o que o fundamentalismo religioso do pai representava para ele, rompe com a instituição religiosa, mas a religião não sai dele. Ele encarna na própria juventude esse radicalismo, uma busca de pureza moral representada pelo “foda-se”, expressão que funcionaria como aquele golpe certeiro que garante o abate do animal de acordo com as prescrições religiosas judaicas. Só que a vida trasborda, se desdobra, escorrega por entre os dedos, surpreende para além de categorias religiosas que tentam aprisioná-la. Carne e sangue misturados. Beleza que está na contradição, na “impureza”.

Negar a própria origem, a própria história, como se isto fosse possível, ao invés de ressignificá-la, auto implicar-se, justamente para transcendê-la é, em termos, shakespearianos, ou rothianos, uma tragédia. Voltando ao nosso personagem, qual seria o Sagrado ao qual ele devotou tanta fidelidade após distanciar-se da religião e pelo qual deu a vida, mesmo se considerando ateu? A sua consciência moral? A sua autoimagem?

Esta síntese – “a vida não é kosher” – é também um pressuposto daquela Antropologia Teológica que dialoga com outras áreas de conhecimento, como a Antropologia Cultural e a Psicologia. A descoberta ou adoção dessa máxima favorece a abertura ao diálogo entre tradições e culturas, sem preciosismos. “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, diz o poeta.

Esta é também a crença de quem faz uma experiência religiosa que transcende o âmbito institucional, que acredita que “a religião não tem o monopólio da Religião”, ou seja, que o Sagrado não cabe no conceito. Porque se assim o fosse ele deixaria de ser Mistério. O Sagrado, nesta concepção, se identifica com o Humano. Não é este um dos dogmas do Cristianismo, de um Deus que se fez Carne e assume a nossa humanidade, e se mistura, se confunde com o Humano?

Convido o leitor a conferir a obra de Roth e garimpar suas próprias pepitas. Esta continua sendo, a meu ver, uma reflexão substancial e atemporal.

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