Adentrei na exposição por uma instalação com cortinas de miçangas vermelhas que a recepcionista descreveu como um “útero”. Proposta sugestiva para o que se avizinhava. Ao final da visita foi que compreendi o significado dessa metáfora: a instalação, como toda exposição, não é para ser apreciada apenas como obra de arte ou peça historiográfica, mas para sermos “penetrados” por ela.
Estou me referindo à exposição “Um defeito de cor”, em cartaz no Museu Nacional de Cultura Afro-brasileira (MUNCAB), em Salvador, inspirada no livro de Ana Maria Gonçalves. Os textos – excertos do livro – como também as fotografias, documentos de época e obras de arte me apresentaram uma outra história do Brasil e contribuíram para agudizar a crise em torno da moral e das categorias religiosas com que fui educado. Bendita crise!
Percorri os corredores da exposição imerso num silêncio inquieto e fértil. Me senti pequeno. Estava diante de “algo” que ainda não sei nomear e que era “maior do que eu”. O que estou buscando aqui, me perguntava? Eram histórias de vida e contextos de época que falavam por si, de maneira mais contundente que as sociologias e teologias em que fui iniciado. Qual um soco de tirar o fôlego, diante dos registros documentais da exclusão e invisibilidade da população negra em nosso país, me fiz perguntas que ainda reverberam: Por que esconderam de mim essa outra história? Qual a minha contribuição para a reprodução do discurso hegemônico branco e cristão? Senti-me de alguma maneira traído e traidor. Porque se calar, se omitir, mais ou menos conscientemente, também é consentir. É claro que já tinha conhecimento e algum sentimento de indignação acerca desses horrores, mas no atual estágio da minha história pessoal esse cenário me afetou sobremaneira. Parafraseando Ângela Davis: “Não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.”
Um ganho adicional. Também as minhas raízes balançaram. De onde vim? O que na minha história vale a pena defender com unhas e dentes? Para onde estou indo? Dei-me conta de lacunas e lapsos de tempo. Senti saudades de ter saudades de minhas raízes. Mais perguntas pulularam. Lembrei-me de um conto africano, interpretado por um contador de histórias de Burkina Faso em viagem pelo Nordeste, sobre um jovem que fazia muitas perguntas e por isso ainda não se casara. Para resolver o seu “problema” foi ter com um ancião que lhe propôs alguns desafios. Dentre as lições aprendidas se deu conta de que há perguntas que respondem a outras perguntas, e de que há perguntas para as quais não há resposta. Portanto, que haja espaço para perguntas!
No dia seguinte à visita ao Museu, participei do cortejo da Lavagem do Bonfim, uma caminhada da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia até a Basílica do Senhor Bom Jesus do Bonfim, quando a imagem do Crucificado foi seguida pela multidão de devotos; baianas e filhas de santo portando flores e água de cheiro em suas quartinhas(o aroma de alfazema se sentia no ar); o bloco Orixalá com faixa onde se lia “Deus ama o povo do Candomblé”, e outras manifestações culturais e religiosas. Durante minha caminhada pela Cidade Baixa um sentimento e uma intenção de reparação que, se não contribuir para alterar a realidade num plano que não conhecemos, possa ao menos me tornar menos egoísta.
Na Bahia de Todos os Santos, que comemorou 270 anos da tradicional Festa, o paradoxo que se perpetua nos três momentos: o cortejo – uma festa de rua – marcado por uma religiosidade sincrética, miscigenada, carnavalesca, atrás da imagem do Bom Jesus; a missa campal diante da Basílica, abençoada por sacerdotes católicos e referendada por autoridades políticas; e a lavagem do adro e das escadarias. O simbólico que estrutura uma realidade. Como é difícil abrir mão do monopólio do sagrado apesar de um discurso de respeito e valorização das diferenças! Como é improvável uma cerimônia inter- religiosa para coroar essa Festa com a presença de sacerdotes e sacerdotisas do Candomblé também no altar! Como seria profético se a religião se desvencilhasse do oportunismo político em ano eleitoral!
A constatação desse paradoxo me faz refletir sobre a falaciosa oposição entre o sagrado e o profano, o puro e o impuro, o extraordinário e o ordinário, propostas pelo platonismo e pela matriz judaico-cristã. As categorias do sagrado e do profano se me apresentam como “dois lados de uma mesma moeda”, dimensões da realidade fusionadas tanto na Avenida quanto na Colina Sagrada. A quem interessa manter ainda hoje a dicotomia entre sagrado e profano?
Por que denomino essas vivências de experiência espiritual? Num primeiro sentido é porque diz respeito à purificação e fortalecimento da minha identidade. Depois, porque se trata de reconhecer um Sagrado profundamente humano, para além dos tratados teológicos e das instituições religiosas. Não é este mesmo o sentido da encarnação do Verbo de Deus segundo a tradição cristã? De um Deus que ao entrar na história humana a diviniza? Lembrei-me de Irineu de Lião, teólogo do século 3o, para quem “a glória de Deus é o homem vivo”. Não tenho certeza se o sentido que santo Irineu queria dar para este enunciado cabe aqui, mas é o que eu afirmo como profissão de fé: o que humaniza o homem e reafirma a sua dignidade é sagrado, tanto na avenida quanto no altar.